Ir .` . Haggard
Discurso de autoria não identificada, originalmente intitulado na AMORC – “Que é a Cabala?” – de provável publicação anterior aos anos da década de 1970, está aqui editado com acréscimo de ilustrações, e substituição de outros pequenos detalhes, de modo a ser adaptado aos propósitos introdutórios desse estudo tão fundamental à compreensão da Filosofia e Fundamentos do Martinismo.
¹ “A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo criar é aceitável em nível de cultura primária, porém inaceitável em nível de cultura superior, porque deturpa o pensamento”.
Assim nos afirma o grande Pensador e Filósofo-Místico Huberto Hoden:
“Crear é a manifestação da Essência em forma de existência – Criar é a transição de uma existência para outra existência. O Poder Infinito é o Creador do Universo – Um fazendeiro é criador de gado. A conhecida Lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se CREA e nada se aniquila, tudo se transforma”. Grafando-se “nada se crea” esta lei está correta, mas se escrita – “nada se cria” – ela resulta totalmente falsa”.
Esta a razão porque editamos as substituições do vocábulo no texto original, preferindo a verdade e clareza do pensamento à quaisquer convenções acadêmicas legisladas para o idioma Português.
Por um Irmão
Qual é o valor ou a relação do estudo da Cabala para com o progresso que o Martinista almeja em seu caminho Iniciático?
Historicamente a Cabala tem origem judaica, embora muitos de seus expoentes lhe tenham atribuído um começo misterioso na remota antiguidade [provavelmente tendo-se mesmo originado de uma raça desconhecida]. Num sentido lato, ela pode ser definida como um sistema de metafísica com ênfase especial na Ontologia e no Cosmogênese. Ocupa-se da relação do homem para com a causa inicial e os poderes e forças do Universo; professa a revelação de certas chaves para as forças naturais, a fim de que, por elas, possa o homem comandar os fenômenos da Natureza, à sua vontade. Neste sentido, a Cabala tem sido uma “arte mágica” e, por muito tempo foi assim considerada por muitas pessoas. A palavra magia, em nenhum sentido foi utilizada pelos grandes cabalistas para designar a invocação de poderes ou forças sobrenaturais de seres malévolos. Os Cabalistas Tradicionais, e os verdadeiros ocultistas, definiam a Magia como uma arte secreta pela qual um singular conhecimento das Leis e dos poderes cósmicos poderia ser usado para o bem-estar do homem. Desse ponto de vista, podemos dizer que a Cabala era uma Ciência Metafísica.
A Cabala veio à atenção pública, pela primeira vez, na Europa, durante o século XIV, embora existam indicações de que ela era conhecida muito antes dessa época por Sociedades ocultistas e, particularmente, por Rosa-cruzes. A profundeza da Cabala, e seu empenho em proporcionar ao homem um vínculo direto com a divindade, e os divinos poderes, impressionaram os eruditos cristãos da Europa durante o século XV. Consta que “um destacado erudito italiano – Pico della Mirandola – exortou o Papa Sixtus [1471/1484] no sentido de que as doutrinas da Cabala deveriam ser aceitas como parte das Doutrinas Cristãs”. Desta forma, teve a Cabala significados diferentes, para diferentes grupos de pessoas. Isto dependia não somente de sua interpretação por um dado grupo, mas também de como esse grupo imaginava que poderia empregá-la para seu próprio uso. Alguns viram nos ensinamentos cabalísticos uma tentativa de explicar metafisicamente o Livro do Gênesis, e revelar os segredos da Natureza. De acordo com esses grupos, Abraão era tido como o “criador” da Cabala, e consta que há suficientes razões para se acreditar que ele fez, pelo menos, uma contribuição substancial para a mesma. De fato, encontramos no Sepher Yezirah, um dos livros da Cabala, a seguinte afirmação:
“Depois que nosso pai, Abraão, vira e investigara essas coisas, sobre elas refletira e as compreendera, denominou-as, gravou-as e as compôs, incorporando-as ao seu poder”.
Outros grupos viram na Cabala um método Teúrgico de adquirir controle sobre a Natureza para proveito pessoal; outros, ainda, encaravam-na como uma espécie de jogo intelectual no qual números e letras eram usados, tanto para propor como para resolver problemas filosóficos.
A palavra Cabala significa Tradição. Diz-se que alguns eruditos judeus têm sustentado que, além da lei escrita - a Bíblia, e da lei oral - o Talmude e o Midrash, a Cabala também continha divinos ensinamentos secretos jamais escritos ou oralmente transmitidos, exceto pela iniciação. Esdras, um dos livros apócrifos comumente abolidos da Bíblia, declara que o Senhor disse a Moisés: “Estas coisas revelarás e estas outras, ocultarás.”
Há razões de sobra para se aceitar a ideia tradicional de que a Cabala era um ensinamento científico-religioso dos antigos judeus e de alguns de seus contemporâneos. Constituía ela uma tentativa de explicar os fenômenos do Universo espiritual e fisicamente, ou seja, de revelar como os fenômenos da Natureza são consequências diretas de Leis e, não, de manifestações arbitrárias.
Esses ensinamentos transcendiam a compreensão e a inteligência geral das massas da época. Era sublime e profundo, acima do conhecimento comum de então; consequentemente, era reservado para o indivíduo que, por seu modo de viver, do ponto de vista moral e intelectual, demonstrara ser digno de recebê-lo. Com toda probabilidade, constituía um dos ensinamentos de mistério da antiguidade, aceitando-se a palavra mistério com a conotação que lhe era atribuída àquela época. A maneira de transmitir esse ensinamento era, quase sempre, através da Iniciação. As iniciações eram provas para testar as qualificações do buscador de uma gnose excepcional, e todo rito iniciatório representava uma introdução à singular sabedoria.
O Sepher Yezirah, ou Livro da Criação, o primeiro livro da Cabala, é tido como o mais antigo, e duas vezes refere-se a Abraão como seu autor, conforme a citação já anteriormente mencionada. Sua origem remonta ao século VI, porém, obviamente, provém ele de fonte muito mais antiga. Constitui a principal introdução à coleção de livros de que se compõe a Cabala. Como a Bíblia, a Cabala consiste de certo número de livros ordenados segundo o seu conteúdo. Outros principais livros do conjunto são: o Sepher Dtzenioutha ou Livro do Mistério Oculto, e o Livro da Sagrada Assembleia Maior. A parte que abrange esses três livros é denominada ZOHAR, que, literalmente, SIGNIFICA “Luz Resplendente”.
Para se ver como é diversificada a natureza dos relatos sobre o começo da Cabala, o Zohar se originou no ensinamento de um célebre rabino da Galileia, do século II, Simeão ben Yohai, que era um famoso Taumaturgo. O entusiasmo que o povo demonstrava por suas realizações, e a adesão que ele conquistou, despertaram a atenção das autoridades romanas. Afinal, ele foi condenado à morte, porém escapou e se escondeu numa caverna durante treze anos. Segundo a lenda, nessa caverna foram encontrados os livros do Zohar.
O mais volumoso desses livros é o da Sagrada Assembleia Maior. Esta obra discute as propriedades místicas de Deus e a maneira como elas se expandiram para crear¹ o Universo físico e o Homem. Explica que essas divinas propriedades creativas¹ são inerentes a letras e números e podem ser utilizadas pelo homem, desde que ele conheça sua correta combinação. O terceiro livro do Zohar, Sepher Dtzenioutha, ocupa-se mais cabalmente da aplicação das formas dos números e letras cabalísticos, e do segredo de suas propriedades mágicas [lei natural]. Por analogia podemos dizer que este é um livro de fórmulas e procedimentos.
O Livro do Mistério Oculto abre com as seguintes palavras:
“O Livro do Mistério Oculto é a obra que trata do equilíbrio de compensação”. De modo prolixo mais erudito, nele se declara que esse equilíbrio consiste de uma compensação de opostos. Trata-se da compensação entre qualquer par de forças opostas. Assim, o verdadeiro equilíbrio é uma harmonia de repouso e ausência de tensão. Quando duas forças são iguais em grandeza, como dois homens puxando as extremidades de uma corda, o movimento cessa e é substituído por um estado de repouso. Esse repouso pode resultar numa espécie de amalgamação das qualidades de ambas as forças opostas.
Por exemplo, diz-se que, se a luz e a obscuridade são igualadas, tem-se o equilíbrio que constitui a sombra, ou a qualidade de ambos estes opostos. Esta obra declara que o antigo símbolo para esse equilíbrio de compensação é “um círculo com um ponto no centro”. Este símbolo sugere que os opostos estão unificados, conforme representado pelo círculo, e, o ponto no centro deste último, refere-se à concentração de suas forças integradas.
O primeiro axioma principal da Cabala é o nome da divindade, que é considerado “inefável”. Traduzido na versão da Bíblia, o axioma é “eu sou o que sou”, ou, “existência é existência”. Metafisicamente, isto pode ser interpretado como “DEUS É”. É o Ser Absoluto, cuja natureza é potencialmente tudo. Portanto, uma descrição mais específica é impossível. Não obstante, os cabalistas não sustentavam que Deus era sem forma. Sua natureza era um complexo de muitos atributos e poderes. Essa forma não devia ser idolatrada. Eliphas Levi, filósofo renomado, ocultista e cabalista, disse em sua História da Magia:
“Os cabalistas têm horror a tudo o que se assemelha à idolatria. Entretanto, atribuem forma humana a Deus, mas isto é uma figura puramente simbólica. Consideram Deus como o inteligente, vivente e amoroso Ser Infinito”.
A palavra sephiroth, frequentemente utilizada na Cabala, em geral significa “emanações numéricas”. Existem 10 [dez] sephiroth, números de 1 [um] a 10 [dez]. Esses números têm um significado abstrato ou simbólico, relativamente à divindade. Há quem diga que o sistema de números de Pitágoras, em que ele atribui propriedades a números, e declara que cada expressão da Natureza tem o seu número, foi derivado da Teoria Cabalística dos números e valores simbólicos. Porém em muito duvidamos disto. Pitágoras foi um estudante dos Mistérios Egípcios. Estudou em Heliópolis, no Egito, sob a orientação dos sábios sacerdotes deste local. A maior parte de seu excepcional conhecimento, que resultou, particularmente, na demonstração das relações matemáticas na escala musical, foi-lhe certamente transmitida pelos sábios egípcios de Heliópolis, que ensinavam as primeiras ciências. Há toda probabilidade de que, se a Cabala é tão antiga quanto se pensa, contém a secreta sabedoria das escolas egípcias de mistérios.
Afirma-se que, entre os sephiroth ou números, tomados individualmente ou em combinação, devem ser encontrados o desenvolvimento da pessoa e dos atributos de Deus. Isto é, a Natureza de Deus tem um valor numérico, e seus poderes são expressos no som de certas letras, de modo que o poder creador¹ de Deus está na palavra falada. Este próprio conceito remonta aos ensinamentos menfitas do antigo Egito. O deus Ptah, cuja principal sede de culto era Mênfis, era denominado o “Arquiteto do Universo”. Dizia-se que ele creara¹, ou objetivara seus pensamentos, pela palavra falada. Alguns dos sephiroth são masculinos e, outros, femininos; isto constitui o princípio da dualidade. Antes que a divindade se manifestasse como macho e fêmea, o Universo não poderia subsistir. Como se lê no Gênesis era ele informe e vazio. Metafisicamente falando, enquanto havia uma unidade dos dois opostos, macho e fêmea, positivo e negativo, prevalecia um equilíbrio, uma suspensão de movimento que impedia a creação¹. Foi somente pela separação e distinta manifestação dos opostos que pôde ocorrer o necessário movimento da creação.
A primeira sephira é o número 1 (Um), a mônada de Pitágoras, ou a autocontida Unidade Creativa¹. De acordo com os ensinamentos cabalísticos, neste número 1 (Um) estão ocultos todos os demais 9 (nove) números. Explica-se que o número 1 (Um) é indivisível e incapaz de multiplicação. Divida-se 1 (Um) por ele próprio, e o resultado continua a ser 1 (Um). Multiplique-se 1 (Um) por 1 (Um), e o número permanece inalterado. Assim sendo, o número 1 (Um), na Cabala bem como em outros sistemas de filosofia metafísica, representa a Divindade, o Grande Pai. UM é o autossuficiente, o integrado poder de toda a creação¹.
Como se desenvolve o número 1(Um)? Como ele se expande, ou adquire suas diversificadas expressões, responsáveis pelos pormenores do mundo? Se de algum modo temos condições de definir esse número UM, o Absoluto ou Deus, deve ele ter uma imagem de si mesmo. Segundo a Cabala, essa imagem é, na realidade, um reflexo de si mesma. Pode-se perceber que foi necessário atribuir força e movimento ao número UM, para explicar a multiplicidade de suas formas. Uma coisa não pode agir sobre si mesma. Deve agir sobre algo mais, provocando mudança. O UM é completo; é a realidade única. Não existe mais coisa alguma, sobre a qual pudesse ele atuar.
Por conseguinte, a Cabala expõe o conceito do Um com um reflexo de si mesmo. Disto resulta uma díada.
Diz-se que a vibração começa entre o UM e seu reflexo. Essa vibração é a interação creativa¹, a força ou a energia pela qual o ocorre a creação¹. O conjunto dos 10 (dez) sephiroth representa o ‘homem celestia’l ou ‘ser primordial’. Os 10 (dez) números e as 22 (vinte e duas) Letras formam o alicerce de todas as coisas. Esses números e letras guardam relação direta com a vibração que existe entre o UM e seu reflexo. Em outras palavras, são a chave para a energia vibratória universal. “Deus formou, ponderou, transmutou e creou¹ com essas 22 (vinte e duas) letras, todo o ser vivo e toda a alma ainda não creados.”
Segundo os ensinamentos cabalísticos, 22 (vinte e duas) letras são formadas pela voz e impressas no ar.
Essas letras são audivelmente pronunciadas em cinco situações: na garganta; sons guturais; no palato; pelos dentes; e pelos lábios.
Nesta afirmação encontramos os primórdios do uso de mantras, ou sons vocálicos, para evocar certos poderes e forças.
Ibn Ezra, famoso filósofo hebreu, nasceu em Toledo, Espanha, em 1092. Também era astrônomo, médico, poeta e filólogo. Escrevendo sobre a Cabala, disse do número 1 (Um), a autocontida mônada:
“Deus, cognominado o UM, é o creador¹ de todas as coisas. Este nome de Deus significa o UM que é auto existente e não requer qualquer outra causa para existir. Considerando-se que, do ponto de vista aritmético, UM é o começo de todos os números, e esses números são todos compostos de unidades, percebe-se que é o UM que, ao mesmo tempo, constitui o TODO... A alma humana foi trazida a este plano para que pudesse ver (ver a obra que Deus escreveu)”.
Certamente, o que aqui está exposto é motivo suficiente para os Martinistas se familiarizarem com a Cabala. Trata-se de um dos mais antigos sistemas metafísicos que o homem conhece. Uma das primeiras tentativas para se criar uma Ciência para relacionar o homem com Deus e com as forças físicas do Universo. Todo estudante de filosofia, metafísica, ou ocultismo, imediatamente perceberá a relação que muitos sistemas de pensamento atuais guardam para com a Cabala. A Cabala constitui uma íntima penetração no pensamento dos nossos antigos Mestres Passados, cujas concepções, em grande parte, continuamos a perpetuar.
Uma advertência final se faz necessária:
- A Cabala, como outros tantos ensinamentos antigos, foi corrompida. Muitos autores contemporâneos escreveram artigos, monografias e livros sobre o assunto, apresentando interpretações inteiramente pessoais. Não tentaram uma conceituação exata, com base em antigas traduções. Tinham ideias preconcebidas quanto ao que deveria ser a Cabala, ou o que ela realmente significava, e a modificaram de conformidade com essas ideias. Outros distorceram o conteúdo dos ensinamentos cabalísticos de forma a que se ajustassem, de algum modo, a alguma doutrina pessoal.
A instrução a que se dedica o estudo Martinista sobre a Cabala, não tendo a pretensão de ser infalível, é uma sincera tentativa de apresentar com a máxima fidelidade possível aos textos originais as verdadeiras ideias cabalísticas. Não é verdade que o buscador que não estude a Cabala será prejudicado em seu progresso espiritual, porém aqueles que se dedicarem a tal estudo verificarão que ele se mostra uma ferramenta preciosa para compreensão de eventuais experiências sutis com que venha a se deparar em seu progresso na senda.